Mais
do que um soco no estômago, o livro é um soco
no cérebro. Ele tira o leitor de sua zona de conforto para jogá-lo num
vórtice de imagens e ideias que, a todo momento, nos questiona sobre as
certezas de nossa realidade, sobre as certezas de quem nós somos. Lembrou-me de
outro romance nacional recente: Diário da Queda, de Michel Laub.
Em
Diário da Queda, o protagonista é um brasileiro e judeu que rememora sua
infância e sua participação num episódio de bullying quando criança, e, ao
mesmo tempo, rememora a história de sua família, a sobrevivência do avô a Auschwitz, a chegada deste ao Brasil, e a
relação difícil entre avô, pai e neto.
Lúcio Manfredi |
Diário
da Queda e Encruzilhada são romances diferentes, mas ambos têm em comum o
mérito de tirar a literatura brasileira contemporânea do marasmo. Tanto a
chamada literatura de entretenimento
(basicamente, fantasia, policial e terror; a ficção-científica permanece num
certo limbo editorial) quanto a chamada alta
literatura praticadas no país ainda sofrem, muitas vezes, de uma
imaturidade bem teimosa. A primeira por insistir em referências que merecem
todo o respeito, mas que já estão desgastadas, a exemplos de Tolkien, Asimov e
Stephen King. A segunda por não sair do círculo vicioso da narrativa centrada
na vidinha do jovem urbano de classe média ou na metalinguagem vazia,
desconectada do que acontece fora da linguagem, seja no país, seja no resto do
planeta. O que me faz ter alguma esperança por um melhor cenário em nossa
literatura é a redescoberta de alguns mestres do passado, antes negligenciados
por puro preconceito de suas propostas narrativas, e novos autores que propõe
uma outra forma de ver o Brasil, o mundo e o próprio ser humano, numa
perspectiva mais complexa, não necessariamente positiva. Como é o caso de
Encruzilhada.
Vou
logo dizendo que o romance é protagonizado por um jovem urbano e é fortemente
metalinguístico. Mas isso não são problemas no texto. Pelo contrário.
Mostram-se como qualidades poderosas.
Revelarei
o mínimo da trama para não estragar as surpresas do leitor.
Uma
noite, Max, um matador profissional, está fugindo de antigos parceiros por não
ter aceito um último serviço. Ele vê uma casa com as luzes apagadas. Resolve refugiar-se
nela. E então começa uma jornada que vai testar os limites de sua sanidade.
À
medida que o tempo passa dentro da casa, Max entra em contato com situações e
objetos que o fazem questionar inclusive sua própria identidade. Presente,
passado e futuro se intercalam numa intensidade que é difícil de avaliar o que
é real, o que é sonho. Aliás, os eventos inexplicáveis que lhe acontecem são
realmente sonhos?, ele se questiona. De repente, ele se vê transformado em
outra pessoa, localizada em outro espaço, em outro tempo. Agora não é apenas com o presente, passado e futuro
do Max matador que ele tem de lidar, mas dele como outra pessoa, como outras
pessoas. E também com o deslocamento no espaço-tempo de outros personagens ao
seu redor. Para piorar as coisas, o clima de terror aumenta, chegando ao nível
do insuportável para ele.
Enquanto
eu avançava na leitura, seis nomes me vieram à cabeça: Julio Cortázar, Adolfo
Bioy Casares, Kurt Vonnegut, William Burroughs, Thomas Pynchon e Philip K.
Dick.
De
fato, no site da editora Draco, que publicou Encruzilhada, é possível conhecer quais
autores Lúcio Manfredi elencou como as maiores referências na construção do seu romance. Quatro dos autores mencionados estão lá (Cortázar, Burroughs, Pynchon
e K. Dick). Mais o americano Don Delillo (aliás, um autor que ainda não li e
preciso fazer isso urgentemente).
Um
contato prévio com a obra desses autores é interessante, porque enriquece a
leitura do romance de Manfredi. (Ou senão, Encruzilhada poderia servir como uma
introdução indireta a nomes não só importantes para os acadêmicos, mas principalmente
que podem transformar sua maneira de entender o mundo, a História e o ser
humano, fazendo-o olhar pelas brechas da
realidade e ver coisas não muito agradáveis, realmente, mas bastante reveladoras.)
Claro
que outros leitores, a partir da bagagem e do entendimento de cada um, poderiam
elencar outros nomes, como Borges, Kafka, Virginia Woolf, Edgar Allan Poe,
James Joyce, Swift, isso sem falar em nomes de outras áreas do conhecimento,
como Jung, Baudrillard, Platão, Heráclito e por aí vai. A riqueza de
interpretações que o romance oferece permite uma leitura bastante particular,
não se esgotando em si, deixando muitas portas abertas.
Em
relação aos seis autores que mencionei, cada um tem um determinado grau de
influência na construção de Encruzilhada. Em menor grau estão Cortázar, Bioy
Casares e Vonnegut. Os dois primeiros são mestres argentinos do fantástico, mas
um fantástico que nunca diz seu nome. Em contos de Cortázar, como Casa Tomada e
As Babas do Diabo, e no romance de Bioy Casares A Invenção de Morel, o
fantástico invade a realidade, sem maiores explicações, e com o poder de abalar
certezas. Já Vonnegut entra com sua ironia triste e os elementos de
ficção-científica que invadem o romance mainstream. Como bem podemos observar
em sua obra mais famosa, Matadouro 5.
Em
maior grau, constata-se a influência de Burroughs, Pynchon e K. Dick.
De
longe Burroughs é o autor da geração beat mais interessante. Sua ousadia não se
dá apenas na linguagem, mas também em suas ideias sobre o homem e a sociedade.
Considerado um rebelde da literatura mainstream, também podemos dizer, com
certeza, que ele foi um autor de ficção-científica dos mais incomuns. Ele criou
distopias totalmente na contramão da ficção-científica conservadora americana a
partir dos anos 1950, em textos cheios de uma poesia brutal e uma sátira
devastadora. Seu polêmico clássico Almoço Nu (Naked Lunch) é um divisor de
águas na cultura americana. Borroughs influenciou muitos artistas contestadores
nas gerações seguintes.
O
texto de Encruzilhada é gostoso de ler, fluido e preciso. Mas também não tem
medo de ser exagerado em certas passagens, rasgando com o maior prazer qualquer
manual da chamada boa escrita. Metáforas estranhas e vulgares. Objetos
inanimados, como uma vassoura, tornam-se personagens. Essas loucuras do texto tanto podem vir de
Burroughs quanto de K. Dick, mas a musicalidade vem do primeiro. Outra grande
influência de Burroughs é a não linearidade, o texto picotado.
Max
não é exatamente uma pessoa. Ele é o
pivô de um jogo literário. Nesse aspecto, o romance se aproxima da obra de
Thomas Pynchon. Édipa Mass, a protagonista de O Leilão do Lote 49, cumpre a
mesma função. Ela é uma dona de casa americana que, ao se tornar inventariante
do testamento de um ex-namorado, um magnata do ramo imobiliário, acaba em meio
a uma aventura sombria e obsessiva. A existência de Édipa e de sua obsessão por
selos postais, um determinado símbolo gráfico e sociedades secretas é um
mecanismo de Pynchon para discorrer sobre uma série de tópicos, indo da história
dos correios americanos à cultura de massa. O mesmo acontece com Max e sua
jornada para recuperar sua sanidade. Manfredi utiliza os percalços de seu protagonista
para fazer reflexões sobre os complexos desdobramentos da percepção humana da
realidade. A partir de certo momento, Max acha que é a única vítima de uma
conspiração bizarra. Assim como Édipa.
Encruzilhada
não é chato. Tudo bem que algumas passagens necessitam de um pouco mais de
calma; e o leitor não vai perder nada com isso. Mas o romance também é bastante
movimentado, como um bom thriller. Apesar de não existir propriamente um
enredo. O suspense se dá pela tensão dos acontecimentos, pelo acúmulo de
dúvidas de Max, e pela expectativa do que pode vir no capítulo seguinte. Como o desenvolvimento da trama é maleável, o
leitor pode esperar qualquer coisa mais à frente.
As
maiores pirações de Encruzilhada eu
atribuo à influência de Philip K. Dick. Para mim, entre os seis autores que
mencionei, PKD é o mais complexo, complicado, fascinante e influente deles. O
próprio autor se considerava um filósofo que escrevia a verdade através de sua ficção, principalmente, em seus últimos
livros. K. Dick era um pensador autodidata, tendo abandonado a Universidade de
Berkeley, na Califórnia, logo no início. Ele considerava os professores de lá
treinados demais, bitolados. Então ele foi estudar Filosofia e outras
disciplinas por conta própria. E suas leituras de autores clássicos e
contemporâneos ganharam interpretações bastante particulares. E muitas dessas
interpretações estão presentes em seus romances, contos e não-ficção, seja numa
abordagem mais pessoal, como no romance Valis, ou através da estória sobre o
estado policial e o consumo de drogas no futuro (O Homem Duplo – A Scanner
Darkly), ou a disputa entre terráqueos e
os estranhos habitantes de uma lua, onde já funcionou um hospital psiquiátrico (Clãs
da Lua Alfa), ou ainda de maneira mais direta
na sua Exegesis, um texto místico-filosófico publicado num livro de quase mil
páginas, mas o texto bruto tendo mais de oito mil páginas.
Depois
de abandonar o sonho de ser um escritor mainstream, K. Dick passou a ver na
ficção-científica a melhor possibilidade literária para especulações
filosóficas. O melhor veículo para entender a verdade: basicamente, de que nossa realidade não é a verdadeira realidade. Escrever sua obra
não era apenas seu ganha pão, ou apenas uma maneira de prazer pessoal. Ele
considerava que havia algo mais profundo, algo mais necessário em sua escrita.
Na literatura mundial, esse sentido de missão não é exclusivo em K. Dick. Mas
nele serviu como um propulsor de ideias que extrapolaram o campo da literatura.
Já há muitos anos, sua obra se tornou importante em vários ramos do
conhecimento humano, das artes e do entretenimento, utilizada tanto por
indivíduos e grupos contrários ao status quo quanto, ironicamente, por forças
do mercado e da indústria, as quais ele tanto combatia.
Eu
sei que é um clichê, mas também associei Encruzilhada e suas influências a certos
filmes. Geralmente adaptações literárias para o cinema simplificam ideias e
conceitos, não conseguem dar conta de todo o conteúdo de um livro. É por isso
que as melhores adaptações são infiéis às obras de origem. Realizadores
inteligentes não tentam fazer a versão de um romance em duas horas de filme. Eles
são inspirados no universo daquele romance para criar outra coisa. Por isso,
David Cronenberg fez uma ótima adaptação de Almoço Nu. Ele se sentiu livre para
criar dentro do estranho universo imaginado por Burroughs. E ainda tem aqueles
filmes que não são adaptações diretas de nenhuma obra do autor, mas isso é um
mero detalhe. Donnie Darko é um das melhores representações do universo de K.
Dick no cinema, com seus questionamentos sobre os limites da realidade e os mistérios
do espaço-tempo. Quanto a Pynchon, é possível analisar qual a influência do autor
em filmes como Blow-Up e The Big Lebowski.
Encruzilhada
não é uma colcha de retalhos. Não é apenas uma homenagem a esses autores, não
são referências sem filtro. Manfredi pega tais referências para criar algo seu.
E ele deixa sua marca principalmente em três aspectos. Primeiro, no uso de elementos
da umbanda e de xamanismo indígena. Não para tornar a narrativa exótica ou
estereotipada. Não para dar uma cor local. Tais elementos estão bem integrados
a tudo aquilo que no texto questiona as bases de nossa realidade. Segundo, o humor,
curiosamente, esculhambado. Ainda mais inserido numa narrativa tão tensa. Não é
alívio cômico. Os personagens se tratam de forma coloquial, com palavrões e obscenidades,
com a malícia do dia a dia. Novamente, é algo brasileiro, sem apelar para o
estereótipo. Esse contraste entre a linguagem cotidiana e a linguagem reflexiva
acaba gerando o terceiro aspecto de originalidade do romance.
Mesmo
o romance centrado em um protagonista jovem urbano, que tem relação com a
classe média, o que seria mais um vício narrativo em mãos menos habilidosas, aqui
se justifica e supera as expectativas. Ao longo do texto, Max tem cada vez
menos certezas da concretude do que está ao seu redor e de sua própria identidade.
Não estamos tratando do draminha de um fracassado por escolha. Mas de alguém
que está desorientado em um macabro labirinto. Max não tem controle sobre sua
situação. Porém, essa subversão de usar o protagonista jovem urbano de outra
maneira poderia ter ido mais adiante, chegando ao mundo fora da linguagem.
Mesmo em romances muito focados nos dramas internos dos protagonistas (homens e
mulheres de diferentes idades, formações, e estilos de vida), autores como Pynchon,
K. Dick e Burroughs encontraram espaço para refletir sobre o que acontece na
sociedade, no caso a americana, fazendo críticas bem sombrias sobre temas como
consumo, controle do Estado, guerras, conservadorismo e violência. Seria bem
interessante se Manfredi tivesse ido pelo mesmo caminho, desenvolvendo melhor
uma crítica à sociedade brasileira.
Outra
coisa. Seu final não me agradou muito. Considero-o aquém de toda a excelência
da jornada. Não que eu estivesse em busca de respostas. Eu não esperava que
tudo fosse explicado. O que eu esperava mesmo era uma pergunta ainda mais
desafiadora. E ela não veio. Terminado o romance, fiquei com ele na cabeça,
pensando na jornada, não em sua resolução.
Quanto
à edição, no formato e-book, só posso dizer que a capa é belíssima em sua
simplicidade. Na revisão, encontrei apenas três errinhos bobos. E a diagramação
foge um pouco dos padrões, fazendo parte da narrativa e abrindo possibilidades
para novos enigmas e interpretações.
Este é um romance necessário na literatura brasileira contemporânea, que merece ser apreciado pela ousadia em unir apuro literário, ficção-científica, terror e fantasia.
Encruzilhada,
de Lúcio Manfredi, 160 págs., Draco.
NOTA: