Escrevi este conto em 2007. Tenho muito orgulho dele porque me permitiu ser selecionado para participar de uma oficina literária virtual, promovida pelo Portal Literal, e ministrada pelo jornalista e escritor José Castello, um cara que sabe das coisas. Durante algumas semanas, mandei textos para ele, via e-mail, e recebi seus comentários valiosíssimos. Não que eu concordasse com tudo o que ele falava. Mas tive a humildade em ouvir. Todo escritor iniciante deve, de uma maneira ou de outra, ter um "contato crítico" com um escritor experiente. Isso meio que te coloca no eixo. O conto não foi revisado, permanecendo a ortografia da época.
Desde menino Ian Lao quis sair de sua aldeia e conhecer o mundo. Sonhava com os lugares maravilhosos estampados nos postais que um certo caixeiro vendeu, por anos e anos, ao povo de sua aldeia. O Muro de Berlim, a Torre Eiffel, as pirâmides do Egito, o Cristo Redentor, a Disneylândia. Para Ian Lao, a vida dura de camponês nunca solapou sua vontade errante. Certa manhã, pouco depois de completar dezesseis anos, o pequeno Ian Lao partiu, olhando duas vezes para trás.
Tornou-se um globe-trotter da falta, do desespero e de pouquíssimas alegrias. Depois de muita reviravolta, foi parar no interior de Pernambuco. E foi numa cidadezinha chamada Nova Esperança que ele recobrou a sua. O lugar era uma miséria, mas tudo bem: lá estava o Gran Circo Lodorov em noite de estréia.
Em suas andanças, ele nunca vira nada parecido. Sem dúvida, era o pior circo que já encontrara. Leões magérrimos domados por um tuberculoso, palhaços feios de dar medo, um velho mágico com truques manjadíssimos, malabaristas muito desastrados. Quando o atirador de facas entrou no picadeiro, todos prenderam a respiração. Para sorte da mocinha na roda de madeira, o atirador deixou cair uma faca no próprio pé e se retirou mancando. A maioria da mirrada platéia ficava cada vez mais aborrecida com aquele acúmulo de incompetências. Mas Ian Lao adorou tudo, porque tudo resultou em patetices de chorar de rir. Ele agora sabia o que fazer em seguida: juntar-se àqueles freaks para garantir pão, cama e sua terapia.
Depois do espetáculo, saiu à procura do dono do circo.
Quando Vladimir Lodorov viu à sua frente a minúscula figura de Ian Lao, ele não sabia o que pensar. O chinesinho começou a falar um espanhol de sotaque carregado e a fazer caretas e gestos, tentando explicar quem era e o que pretendia. Lodorov entendeu pouca coisa, mas percebeu que o chinesinho queria trabalho. Por sua vez, perguntou, com um português de sotaque carregado, também fazendo caretas e gestos, se Ian Lao conseguia dar cambalhotas num fio a dez metros de altura, tocar a ponta do nariz com o pé, dobrar o corpo para que o colocassem numa caixa, equilibrar pratos em varinhas. Ian Lao riu e riu, e disse: no. De repente, ele tirou de um saco de pano gasto um gongo dourado e uma baqueta. E pôs-se a bater e a gritar. Para espanto de Lodorov, aquilo não soava exatamente belo, mas exótico e prazeroso. Então veio a idéia de tornar o chinesinho o abre-alas do Gran Circo, o prenunciador de seu encantamento e diversão.
A trupe chegava às cidadezinhas e Ian Lao, por onde passava, se punha a tocar seu gongo e a gritar as atrações do Gran Circo Lodorov. Seu português, aprendido a bom custo, dava para o gasto. À noite, ele assistia ao pastelão involuntário. Mas depois de meses e meses, sua terapia já não tinha o mesmo efeito. As patetices perderam a graça. Certa manhã, Ian Lao partiu, sem olhar para trás.
Numa estação ferroviária decaída, ele quis saber para onde ia o trem prestes a sair. Ninguém lhe deu a mínima. Até que ele colocou os pertences no chão, abriu o saco de pano e o gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um pio. Todos olharam para ele. Atenderam-no. Agora a dúvida era saber se iria para a Salvador das batucadas do Olodum ou se para o Rio da bateria da Mangueira.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
sábado, 2 de novembro de 2013
HERÓI (CONTO)
Quando
Bruno terminou de ler a revista em quadrinhos, sua cabeça ainda latejava. Era o
último número de uma antiga edição de Watchmen.
Ele
estava em seu quarto, a sós, numa tarde quente de terça-feira. Estava estirado
na cama, com o travesseiro dobrado, aliviando o pescoço.
Ficou
alguns minutos com a revista fechada nas mãos, apoiada na barriga. A capa o
hipnotizava. Todo aquele sangue sendo derramado num grande relógio de
ponteiros, como o Big Ben, em close.
Até que
ele voltou à realidade. Virou para o lado e pegou o celular no
criado-mudo para conferir as horas.
Eram
quatro e três.
Puta
que pariu. Não fiz uma linha do meu dever de casa, pensou ele.
Levantou-se
rápido, deixando a revista sobre a cama.
Pegou
a mochila no chão, e sentou-se na mesa de estudo.
Estava
prestes a tirar livros e cadernos da mochila, mas parou de repente.
Não
ia adiantar abrir livro nenhum. Sua cabeça latejava. E mesmo que ela estivesse
cem por cento, Bruno não parava de pensar nos personagens, na trama e na forma
como ela foi contada em Watchmen. Aliás, tudo isso foi a causa da
dor de cabeça.
Ele
precisava conversar com alguém sobre o que tinha lido.
Poderia
ligar o computador e entrar no Facebook, no Skype,
ou em alguma sala de bate-papo sobre quadrinhos que frequentava. Mas seria
frustrante. Ele estava excitado demais. Não queria teclar. Não queria falar ao
microfone, nem usar a webcam. Queria conversar com alguém cara a cara.
Ele
sabia exatamente quem seria essa pessoa.
Se
saísse de casa naquele momento, teria de voltar em menos de duas horas.
Geralmente, sua mãe chegava do trabalho às seis. O pai chegava mais tarde.
Levaria
o maior esporro por não ter feito o dever de casa. Mas o esporro seria pior,
talvez com direito a castigo, se sua mãe não o encontrasse bem quietinho na
sala ou no quarto.
Portanto,
ele não podia perder tempo.
Levantou-se
da cadeira, abandonando a mochila no chão.
Vestiu
outro short, outra camisa e calçou os chinelos.
Deixou
a revista sobre a cama, sem medo. Bruno não tinha nenhuma irmã ou irmão,
de qualquer idade, para estragá-la.
Pegou
a carteira, o celular e suas chaves no criado-mudo. Desligou o ventilador de
teto.
Não
teve vontade de ir ao banheiro.
Foi
até a cozinha, abriu a geladeira e tomou um copo de água. Aproveitou
também para partir e comer a primeira fatia do bolo que Carmem, a diarista,
tinha preparado naquela tarde.
Conferiu
novamente as horas e saiu de casa.
Ele
morava num prédio aparentemente pequeno, com seis andares acima do nível da rua
e seis abaixo. Na verdade, existiam ali seis apartamentos por andar, num total
de setenta e duas famílias de moradores. “Que lata de sardinha”, disse Bruno a
si mesmo, certa vez, ao pensar no assunto e fazer os cálculos de cabeça.
Mas
agora sua cabeça não funcionava direito. Ainda assim, ele a forçava por
considerar que valia a pena. Precisava manter as ideias vivas na mente, apesar
da dor.
Ele
morava no terceiro andar. Como não havia elevadores, desceu as escadas
meio às pressas.
Chegando
ao térreo, encontrou o zelador, seu Jonas. Ele trabalhava durante o dia,
circulando pelas dependências do prédio.
“Sua
mãe não vai gostar dessa sua saída.”
“Vou
na farmácia. Ela mandou.”
“Sei.”
“É
verdade.”
O
sorriso largo de Bruno camuflava seu pensamento. Cuide sua vida seu
puxa-saco dos infernos.
Bruno
havia esquecido que corria o risco de ser dedurado por aquele infeliz.
Mas
agora não tinha mais volta.
Foi
até a parede, acionou um botão e ouviu dois estalos elétricos,
simultâneos. Atravessou o portão interno do prédio, em seguida, o externo, e
ganhou a rua.
O
zelador acompanhou todos os seus movimentos.
Aquele
era um bairro onde morava gente de classe média. A maioria sem grana sobrando.
Apenas uns poucos com alguma grana para gastar. O trânsito era barulhento.
Pedestres se equilibravam entre calçadas estreitas e o asfalto. Existia um
intenso comércio formal e informal.
Bruno
caminhava rapidamente, desviando-se das pessoas com habilidade, mesmo que a
cabeça latejando tentasse desequilibrá-lo.
A
partir de certo momento, ele não conseguia parar de pensar na figura do Dr.Manhattan,
um dos personagens de Watchmen.
Se
o Dr.Manhattan e o Superman se enfrentassem,
seria uma luta épica. Seria demais ver o quase sempre tranquilo kryptoniano e o
quase sempre indiferente doutor em ação, um contra o outro. Afinal, quando os
dois se irritam, coisas muito sérias acontecem.
O Superman é
um alienígena com poderes de um deus, graças à sua adaptação ao nosso sol,
jovem e amarelo. O Dr.Manhattan é um deus criado pela Ciência,
pelo homem, mesmo que por acidente. Quem venceria? Talvez essa luta não tivesse
fim. E para a sobrevivência da humanidade, uma hora, teria que ser travada fora
da Terra.
Bruno
achou estranho, até deu risada, ao perceber que estava falando como
um de seus professores, ainda que o assunto fosse quadrinhos.
A
cabeça doía um pouco mais toda vez que elaborava um raciocínio. Era melhor não
forçá-la.
O
lugar aonde estava indo não ficava longe. Bruno seguia seu rumo na esperança de
chegar logo, começar a falar e o aperto no cérebro diminuir.
Realmente,
não demorou tanto.
Bruno
parou de andar, e fixou os olhos num ponto do outro lado da rua. Era uma
fachada modesta. O letreiro suspenso dizia: Galileu - livros usados,
xérox, impressão, serviços de internet.
Tirou
o celular do bolso do short. Passou-se meia hora desde sua saída de casa.
Esperou
o trânsito de mão dupla melhorar e atravessou a pista, apressado.
Já na
porta do sebo, ainda caminhando, viu alguns livros numa banquinha de madeira,
do lado de fora. Estavam à venda por quatro reais e noventa e nove. Não
quis conferir nenhum deles.
Ele
entrou.
O
lugar era estreito. Cheio de livros nas paredes e no chão. Três ou quatro
clientes estavam ali, observando as lombadas, virando as páginas, lendo.
Bruno
passou por algumas pilhas de livros e duas pessoas, e foi para os fundos do
sebo. Até encontrar um cara sentado atrás de um balcão, ao lado do único
computador do lugar.
Ele
estava de cabeça baixa, lendo um livro de Stephen
King. O pistoleiro.
O
cara levantou a cabeça antes de Bruno parar na sua frente. Sorriu com os lábios
e fechou o livro, marcando a página com o polegar.
“Tô
com uma puta dor de cabeça”, disse Bruno.
“Olha
a boca, garoto.”
“Desculpe.”
O
cara se chamava Marcelo. Ele era o dono do sebo.
“Conhece Stephen
King?”
“Já
ouvi falar.”
“Você
precisa ler os livros dele. São viciantes.”
“Não
tenho saco.”
“Eu
sei que ainda têm muitos quadrinhos bons pra você ler, mas tem muita ficção
legal também.”
“Prefiro
investir nos quadrinhos.”
“Esse
aqui mesmo. É o primeiro livro de uma série, A torre negra. No
total, são sete. Aliás, oito. Foi lançado um recentemente. Na verdade, o oitavo
não é o último. Fica lá pelo meio da saga. Enfim, faz tempo que eu queria ler.
Agora vou encarar um atrás do outro.”
Bruno
sempre tentava adivinhar quantos anos Marcelo tinha. Ele não aparentava ser tão
velho. A magreza e as camisas xadrez ou de super-herói ou de banda de rock
dificultavam um palpite melhor.
Bruno
estava impaciente com a conversa de Marcelo. Este percebeu e rapidamente mudou
de assunto.
“Mas
me diga, veio procurar o que hoje?”
“Quero
apenas conversar. Sobre Watchmen.”
“Você
terminou de ler.”
“Sim.
E é por isso que minha cabeça tá doendo.”
“Quanto
anos você tem, Bruno, treze, quatorze?”
“Treze.”
“Você tá
muito novo pra ler Watchmen, cara.”
“Tá
me chamando de retardado, Marcelão?”
“De
jeito nenhum. Mas na sua idade, eu lia o X-Men de Chris Claremont. Na época, eu
nem sabia quem era ele, que eram os artistas que trabalhavam com ele. Apenas
curtia as estórias e os desenhos. Parecia novela das oito. Só que uma novela
com muita porrada, destruição e mortes. Era uma coisa bem mais escapista.”
“Escapista?”
“A
gente lia apenas pra se divertir.”
“Já
li algumas revistas atuais da DC e da Marvel que
são bem divertidas.”
“Mas
é diferente. De uns quinze, dez anos pra cá, os quadrinhos ficaram muito
sombrios.”
“Watchmen é
dos anos oitenta.”
“Eu
sei, mas...”
“Boa
tarde, amigo”, disse um cliente para Marcelo, interrompendo a conversa. “Você
teria alguma edição de bolso de Viva o povo brasileiro?”
“Com
certeza. Só um momento.”
Marcelo
tirou o polegar de dentro do romance, marcando a página com uma régua. Depois
fechou o livro, deixando-o no balcão. Levantou-se para levar o cliente
até a estante lateral. Os dois ficaram de costas para Bruno.
Este
aproveitou para checar a seção de quadrinhos, na estante oposta, ali perto
dele, na altura de sua perna.
Olhou
para baixo, dobrou os joelhos e curvou-se para alcançar três ou quatro pilhas
de revistas.
Começou
a vasculhá-las. Eram edições antigas e recentes. Cebolinha, Mônica,
Pato Donald, Mickey, Tex, Dylan Dog, Wolverine, Batman, Lanterna Verde,
Homem-Aranha, Hulk entre outras.
As
edições recentes da DC e da Marvel chamaram
sua atenção. Ele endireitava o corpo toda vez que as folheava. A
esperança era de que algumas delas formassem uma estória completa. Porém, numa
rápida checagem, viu que estava sem sorte. Costumava baixar muita coisa da
internet para ler no computador. Mas ter uma revista em quadrinhos nas mãos era
muito mais prazeroso. Era diferente de jogar videogame, de assistir a um filme.
Provocava nele um estranho fascínio. Como personagens estáticos podiam ganhar
tanta vida? Bruno adorava curtir quadrinhos deitado na cama, a sós, em
silêncio. Um momento apenas dele, desconectado de tudo, de todos.
De
repente, a dor apertou no alto da cabeça.
Bruno
fechou os olhos e parou de folhear uma revista. Logo depois, abriu-os e
respirou fundo. Colocou a revista na estante e tirou o celular do bolso.
Restava quase uma hora para sua mãe chegar em casa.
Voltou-se
para trás. Marcelo ainda estava ocupado com o cliente.
Bruno
tinha pensado que conversar com alguém cara a cara ajudaria a diminuir a dor.
Mas o esforço da caminhada acabou piorando-a. Essa era a verdade.
Resolveu
ir embora.
Desta
vez, havia somente pilhas de livros como obstáculos, sem ninguém pelo caminho.
Olhou
em direção a Marcelo.
Numa
pausa da conversa com o cliente, Marcelo virou a cabeça.
“Já
vai?”
“Minha
mãe tá me esperando.”
“Volte
amanhã pra terminarmos o papo.”
“OK.”
“Até,
garoto.”
“Até.”
Bruno
odiava quando Marcelo o chamava de garoto.
Ao
sair, deparou-se com alguém vindo da rua.
Era
Dênis, o único funcionário do sebo. O cara conseguia ser mais magro do que
Marcelo. E talvez mais nerd também. As discussões entre os
dois podiam ser divertidas. Um querendo mostrar mais conhecimento sobre filmes,
séries de TV, quadrinhos, games e livros do que o outro. Bruno não entendia
metade do que falavam. Dênis tinha vinte e dois anos. Bruno sabia com certeza.
Afinal, havia perguntado ao próprio, uma vez.
“E
aí, Bruno?”
“Tudo
certo.”
“Já tá
de saída?”
“Sim.”
“Terminou
de ler Watchmen?”
“Nem
me fale.”
“Deu
um nó na sua cabeça.”
“Nem
me fale.”
***
Umas
quatro horas depois, por volta das nove da noite, Bruno estava na frente do computador.
O PC ficava num rack ao lado da mesa de estudo. Ao conseguir
voltar para casa antes da mãe, Bruno se livrou da encrenca maior. Mas teve de
ouvir um pequeno discurso sobre Direitos e Deveres. Terminado o jantar, ele foi
para o quarto fazer o dever de casa, mesmo com a dor de cabeça. Ele não contou
à mãe sobre a dor. Ele podia tê-la usado como desculpa para se livrar de
qualquer esporro. Tinha pensado nessa solução ainda à tarde. Porém, também
sabia que correria o risco de sua mãe mandá-lo dormir mais cedo, para
descansar. Então, ele ficaria sem acessar a internet naquela noite. Por isso,
com muito esforço, ele leu os textos que precisavam ser lidos, resolveu as
questões que precisavam ser resolvidas. Sua mãe verificou tudo rapidamente e o
liberou para fechar a porta do quarto.
Bruno
estava no computador procurando informações sobre Watchmen. Depois
de ler os doze números da série, ele estava pronto para saber mais sobre os
personagens, sobre o cara que os desenhara e, principalmente, sobre o cara que
escrevera toda aquela assustadora e fascinante doideira.
A
primeira coisa que fez foi entrar no Google e digitar: watchmen.
Surgiram os resultados mais populares. Foram mostrados links de
fotos e de trailers do filme, que agora, sim, ele assistiria. Clicou no tópico
em português da Wikipédia. Não havia muita informação. Não se
interessou pelos outros sites em português. Dava para ver que se dedicavam
totalmente ao filme. Bruno não quis seguir com a pesquisa. Ele teve outra
ideia.
A
dor de cabeça estava realmente incomodando. A ponto de deixá-lo meio
irritado. Ela ficara pior enquanto Bruno fazia o dever de casa. Depois, ela
diminuiu pouco. Ele poderia desligar o computador e ir para a cama. Continuaria
no dia seguinte. Mas estava obcecado em saber mais sobre Watchmen.
Acreditava que o sofrimento valia a pena.
Então
foi ao seu Favoritos em busca de uma página. Era de uma sala
de bate-papo sobre quadrinhos.
Na
tela de acesso, Bruno se registrou como Dr.Manhattan.
Ao
entrar na sala, viu um monte de nicks, numa coluna lateral.
Não
reconheceu nenhum deles.
Não havia
nenhum relacionado a Watchmen.
Bruno
mal esperou as mensagens aparecerem na tela.
Dr.Manhattan: alguem a fim de tc sobre watchmen?
Rolavam
três ou quatro conversas sobre temas relacionados a quadrinhos. Mas ninguém lhe
dava atenção.
Bruno
se sentiu mais triste do que irritado.
Feiticeira Escarlate: alan moore é um doente, mas eu amo ele
Bruno
sorriu, todo satisfeito.
Dr.Manhattan: eu nunca tinha lido nada como watchmen
Feiticeira Escarlate: moore ja fez muita coisa excepcional,
mas com watchmen ele se superou
Mr.Natural: e big numbers??
Sandman: neil gaiman é mais foda
Dr.Manhattan: o q é big numbers?
Batman: frank miller é o verdadeiro rei
Feiticeira Escarlate: frank miller é um fascista
Valentina: eu tb gosto mais de neil gaiman
Dr.Manhattan: o q é big numbers???
Batman: frank miller tem colhoes
Angeli: big numbers é a suposta obra-prima
inacabada de moore
Mr.Natural: o cara n teve chance de concluir a
serie
Dr.Manhattan: e fala sobre o q?
Angeli: a construcao de um grande shopping numa
pequena cidade da inglaterra
Valentina: deve ser uma chatice
Mr.Natural: aí que ta, é brilhante, roteiro e
arte
Angeli: dos doze numeros em mente, so saíram
dois, alem de um terceiro (nunca publicado) que um fã teve acesso ao material e
divulgou uma versao xerocada na internet
Dr.Manhattan: mas eu quero saber de wachtmen
Feiticeira Escarlate: nada é p sempre, mas vai ser difícil
uma hq superar watchmen, o mundo dos quadrinhos é dividido em antes e depois
dela
Dr.Manhattan: os herois de watchmen n batem muito bem
da cabeça, e ninguem tem superpoderes, a n ser claro o dr.manhattan
Angeli: moore fez tudo aquilo como uma mistura
de homenagem e critica aos super-herois. pessoas comuns q tem a ideia de vestir
fantasias p fazer justiça, mas que na verdade estao extravazando suas próprias
frustrações pessoais. ao mesmo tempo, a gente os admira porque queriamos fazer
o q eles fazem
Dr.Manhattan: eu n queria ser tao deprimido como eles
Angeli: moore leva os recursos da nona arte ao
limite, p mostrar como os quadrinhos podem ser um formato maduro e completo.
ele cria uma estrutura em tres camadas tao integrada com a trama q se torna
praticamente impossível dela existir em outras midias. ela foi pensada como hq
e tem sua melhor expressao em hq
Feiticeira Escarlate: watchmen é o Ulisses dos quadrinhos
Dr.Manhattan: quem é Ulisses?
Feiticeira Escarlate: esquece
Angeli: dr.manhattan, voce descobriu a hq por
causa do filme?
Dr.Manhattan: na verdade tudo começou uns quatro
meses atras. um tio meu (o irmao mais novo de minha mãe) resolveu me dar duas
caixas pesadas com todos os seus quadrinhos. as vezes ele me falava de como era
legal ler quadrinhos, mas eu nunca dava muita importancia. meu tio ia se casar.
no dia em q veio com as caixas, ele me disse q n ia ter espaço no novo
apartamento p guarda-las. ele tb me disse p dar uma chance ao q havia nelas, q
ia ser divertido. as caixas ficaram num canto do meu quarto por um bom tempo.
ate q num sabado de chuva forte eu tava jogando videogame e faltou energia.
minha mae me proibiu de sair de casa. fiquei sem nada p fazer. claro q eu podia
ter ficado na cama ouvindo musica no celular. mas resolvi abrir as caixas.
havia revistas grandes, pequenas, albuns, encadernados. comecei a ler uma
revista do superman: a primeira parte de ´entre a foice e o martelo´. depois li
a segunda parte e finalmente a terceira. e fui ler outra revista, e mais outra,
e mais outra. e durante as semanas seguintes meio q peguei uma febre por quadrinhos.
eu praticamente so fazia le-los no meu tempo livre. ate q um mes atras eu
encontrei no fundo de uma das caixas os tres primeiros numeros de watchmen.
depois de devora-los e de minha cabeça doer pela primeira vez (ela ta doendo
agora mesmo pq hj terminei de ler a coisa toda) vasculhei as caixas em busca de
mais watchmen e nada. entao resolvi caçar numero por numero ate completar essa
ediçao antiga em doze partes. mas numa rapida pesquisa pela internet logo vi q
seria complicado. pela falta de grana e pela dificuldade em achar todos os
números. acabei baixando muitos deles e meus pais arremataram p mim os quatro
ultimos em sites de compra e venda
Angeli: dr.manhattan, qtos anos vc tem?
Dr.Manhattan: p q todo mundo me pergunta isso??
Dr.Manhattan: treze, treze
Feiticeira Escarlate: oh boy
Angeli: inocencia perdida, sabedoria adquirida
Dr.Manhattan: q diabo vc ta falando, cara???
A
cabeça de Bruno parecia que ia explodir. Ele não pensou duas vezes: em questão
de segundos, deu dois cliques na tela e desligou o computador.
Precisava
urgentemente de um banho morno.
Abriu
a porta do quarto dele. O corredor não estava totalmente escuro. De um lado, a
porta do quarto dos pais estava fechada, com a luz acessa por trás dela. Sua
mãe devia estar na cama com o laptop no colo. Do outro lado, havia reflexos da
televisão na parede da sala. Bruno avançou de mansinho e flagrou o pai
cochilando no sofá. Não o incomodou, retornando em direção ao banheiro.
Foi
um banho demorado.
Já
com a luz do quarto apagada, pegou o celular e conferiu as horas pela última
vez. O sono veio logo. O esgotamento superou a dor de cabeça.
***
Quando
o perigo surgiu, sua cabeça não estava doendo mais. E sim, seu estômago.
No
dia seguinte, uma quarta-feira de mormaço, Bruno voltava da escola, morto de
fome.
Assim
que descera no ponto de ônibus, já com a mochila nas costas, andou mais alguns
metros até a próxima esquina, e deixou a avenida estreita para entrar na
rua onde morava.
Não
conseguia pensar em nada além do almoço.
Sabia
o que teria para comer. Sua mãe sempre preparava tudo na noite anterior.
Estava
empolgado. Ela tinha feito uma lasanha de queijo e presunto com bastante molho
vermelho.
“Bruninho”,
gritou uma voz feminina.
Ele
parou de andar e virou-se para trás, num reflexo.
Recuperando-se
do susto, reconheceu quem o chamara.
Era
Mariana, Mari, uma vizinha, com um sorriso franco.
Ela
também voltava da escola. O uniforme era diferente do seu. Ela não carregava
nenhuma
mochila. Apenas um caderno grande, de capa dura, envolto no braço.
“Dei
sorte em te encontrar. Esqueci minha chave de casa. Minha mãe tá chegando do
médico. Vou esperar no playground”, disparou ela, aproximando-se.
Aquele era o horário de descanso de seu Jonas, o zelador. Encontrá-lo pela
portaria seria praticamente impossível.
Mari
chegou bem juntinho de Bruno, mas não parou de andar, obrigando-o a se mexer,
até alcançá-la, os dois lado a lado.
“Eu
ia interfonar pra algum morador abrir os portões. Seria uma chatice. Mas você
me salvou. Meu herói”, completou ela, fazendo Bruno sorrir timidamente e olhar
para o chão.
Era
comum Bruno ficar nervoso na presença de Mari. Ele estudava mil vezes as
palavras antes de abrir a boca. Ela era bonita, gostosa, legal e tinha
dezesseis anos. Ou seja, uma ameaça completa à sua paz interior.
Para
seu espanto, ele constatou o óbvio: até agora, não havia dito nada, sequer
um oi.
Pense,
Forrest, pense.
Mari
falava que estaria perdida se a mãe não a socorresse, naquela hora do almoço. O
irmão caçula já tinha saído para a escola. O pai só chegaria do trabalho à
noite. Ela poderia ir para a casa de uma amiga, ali pelo bairro, tudo bem. Não
seria nada desagradável. Mas ela estava louca para terminar de ler o romance
policial que vinha devorando na última semana, A rainha do castelo de ar. Ela perguntou a Bruno se ele sabia quem
era Lisbeth Salander. Ele balançou a
cabeça, negativo.
Por
fora, Bruno era um ouvinte atencioso. Por dentro, um pensador angustiado.
Porra,
moleque, fale alguma coisa.
“Você
pode esperar sua mãe lá em casa.”
Mari
o encarou e sorriu.
“Você é
tão fofo... Tô precisando mesmo de um copo de água gelada.”
Outra
vez, Bruno sorriu timidamente, mas agora manteve o olhar firme.
Sua
cabeça estava confusa. Ele mal podia acreditar na atitude que tivera. Mas não estava
exatamente satisfeito. Afinal, estaria a sós com Mari, na casa dele. Sua
coragem já tinha se esgotado ou ainda teria fôlego para mais, muito mais?
A dúvida começava a torturá-lo.
Os
dois chegaram ao portão externo do prédio.
Bruno
meteu a mão no bolso da calça. Tirou suas chaves. Selecionou a que serviria.
Executava cada etapa com calma, controlando a respiração, para mostrar-se
seguro.
Estava
de cabeça baixa quando notou o silêncio. Mari tinha parado de falar.
Observou-a.
Os
olhos dela estavam petrificados.
De
repente, tudo fez sentido. Bruno sentiu alguém se aproximar às suas costas.
Virou-se
para trás. O receio se transformou em pavor.
Três
detalhes lhe chamaram a atenção: os olhos mortiços do sujeito, o bigodinho ralo
e a faca de mesa serrilhada.
“Celular.”
Nada
mais foi dito.
Não
houve ameaças aos berros, nem gestos violentos.
A
fome de Bruno foi substituída por uma queimação no estômago.
A
mochila ficou um tanto mais pesada. Os ombros mais rígidos. A camisa grudou de
vez nas costas molhadas de suor.
Mari
agiu primeiro. Trocou o caderno de braço e meteu a mão no bolso traseiro da
calça, passando o celular adiante.
Em
seguida, Bruno entregou o seu.
O
sujeito guardou um e outro num saco plástico de supermercado. O saco foi parar
dentro do short, na virilha. O sujeito nunca tirava os olhos de Bruno e Mari.
Bruno
imaginou que o sujeito sairia correndo depois de feito serviço. Mas não foi o
que aconteceu.
Por
um brevíssimo momento, o sujeito fixou os olhos em Mari. Não dava para saber o
que ele estava pensando. O rosto não revelava nada.
Veio
o susto: o sujeito avançou sua mão livre até o seio de Mari, e começou a
apalpá-lo.
Ignorando
o perigo, Bruno tinha acompanhado o movimento do braço, sem acreditar no que
testemunhava.
Mari
mal se mexia. Não dera um pio.
Mas
Bruno não levantou a cabeça para ver como ela estava, seu semblante. Ele
não conseguia tirar os olhos da mão no seio.
O
sujeito apertava, e girava a mão, apertava, e girava mais uma vez.
Bruno
teve um pensamento de que logo se envergonhou: queria estar no lugar do outro,
sem dúvida.
Novo
susto. O sujeito recolheu a mão, deu as costas e foi embora.
Bruno
voltou-se imediatamente para ele.
Viu,
à medida que o sujeito se afastava, a faca de mesa ser levada à frente oculta
do short e desaparecer.
Bruno
não foi conferir se Mari estava bem.
Ele
não tirava os olhos do sujeito, caminhando para longe.
O
estômago não doía mais. Não havia mais fome, nem queimação.
Bruno
sorriu levemente com os lábios, numa mistura de revolta e ironia, e sussurrou:
“Watchmen”.
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
UMA NOITE QUALQUER (CONTO)
Daniel trabalhava
na pensão dos Velhos. Por volta das nove da noite, terminavam suas obrigações.
Então era comum ele pegar toalha, xampu e sabonete e ir para os fundos da
pensão, onde havia uma ducha larga no pátio. A água caía forte. Às vezes, ele
pensava em dar um grito, mas se segurava, permanecia em silêncio. A verdade
é que gostava da água gelada batendo em seu corpo jovem e magro, como se
uma correntezinha elétrica o atravessasse, da cabeça aos pés. Não havia perigo
de o flagrarem nu e ensaboado. Ele sempre usava um short sem bolsos durante o
banho. Nos dias muito frios, não tinha jeito, só lhe restava o banheiro dos
fundos da pensão. Era um cubículo cheio de mofo, com uma pia mais amarela do
que branca, um vaso sanitário idem e um chuveiro vagabundo. Ao abri-lo, mais
parecia uma torneira de tão fraco. Daniel, as cozinheiras, as faxineiras,
qualquer entregador de encomendas, pedreiro, eletricista, ou encanador tinha
que se aliviar por ali mesmo. Daniel fazia sua pouca barba no pátio,
aproveitando a luz natural. Todas as manhãs, ele acordava ainda com o céu
cinzento para aproveitar a ducha larga em paz e começar melhor o dia.
Depois de sair do banho, em sua rotina noturna, ele se arrumava em seu quarto e ia para a cozinha ampla. Abria a geladeira à procura de alguma sobra do jantar servido aos hóspedes e moradores. Ligava o fogão e esquentava a comida. Limpava tudo, apagava a luz e voltava para o quarto. No corredor, de longe, ele podia ver Danilo, que tomava conta da recepção durante o resto da noite e a madrugada. Isso quando ele estava por lá, quando não largava o posto.
O quarto de Daniel ficava no fundo do corredor que ligava a cozinha, a sala de refeições e a recepção. Era um ponto estratégico, afirmavam os Velhos. Para o caso de qualquer emergência. Para o caso de qualquer amolação, isso sim. Não era raro alguém bater na porta de Daniel e ele ter de deixar o seu descanso, a sua cama, para atender a solicitação de algum hóspede, morador ou dos Velhos. Era um vaso sanitário entupido, ou um gato de rua rondando pelo primeiro andar, ou uma misteriosa poça de vômito apodrecendo na escada, ou a porta da rua que precisava ser aberta para algum hóspede ou morador entrar na pensão. E lá estava Daniel para desentupir, enxotar, esfregar pano e abrir porta. Danilo era quem devia fazer essas tarefas e não ele, indignava-se. Afinal, quem estava de serviço naquele turno? Mas Daniel nunca foi reclamar com os Velhos. Desde o começo, o Velho deixara no ar que as coisas seriam assim. Se não quisesse o emprego, que fosse embora.
O quarto era pequeno, mas com espaço razoável para colocar uma cama de solteiro em um canto e um guarda-roupa estreito ao lado. Além de uma mesa de metal, daquelas de bar, e uma cadeira também de bar, na parede oposta à cama. Para alívio de Daniel, havia uma janelinha alta, que fazia circular um bom vento. Mas o que salvava mesmo era um ventilador nanico que ficava em cima de um banquinho de plástico. E também havia seu bem mais precioso: uma televisão de dez polegadas. Mesmo enxergando tudo dobrado e com as cores trocadas, ele gostava de assistir ao noticiário nela. Aproveitava mais do que se tivesse um rádio. Mas acabava se cansando da imagem confusa. Então, pegava um romance policial ou de terror para ler, até cair no sono.
Naquela noite, justamente quando dormia com um desses livros aberto no peito, de luz acesa, bateram na porta do quarto, com força. Daniel tomou um susto. Levantou-se logo. O livro foi parar no chão. Mais batidas na porta. Uma voz gasta e irritada se pronunciou:
“Levanta, rapaz”.
Era o Velho.
Daniel estava apenas de short. Então vestiu uma camisa e calçou os chinelos. A porta foi destrancada, sem nenhuma pressa. O livro ficou debaixo da cama.
O rosto do Velho carregava o mau humor de sempre. Ele usava óculos grandes, um pijama azul e o cabelo branco estava meio desgrenhado.
“Que demora”, disse o Velho.
“Boa noite, seu Herculano.”
“Olhe ali na porta da rua.”
“O quê?”
“A porta da rua. Alguém está batendo.”
A vontade de Daniel era de meter um soco na cara do Velho. Mas acabou por atendê-lo. Saiu do quarto, abriu caminho e parou no meio do corredor. O Velho recuou para junto da parede, como se buscasse proteção contra uma ameaça desconhecida.
Daniel encarou a porta da rua. Era toda de madeira, cheia de entalhes, mas sem janelinhas ou aberturas. Não dava para ver se realmente havia alguém do outro lado. Ninguém batia nela. Escutava-se o som de um ou outro carro passando. Aliás, Daniel queria saber o que o Velho fazia fora da cama tarde da noite. Os Velhos moravam em uma casa dentro da pensão. No térreo, entre a cozinha e a sala de refeições, havia outro corredor, que levava até a casa deles. Lá havia sala, banheiro, quarto e cozinha, tudo em tamanho menor.
A recepção estava abandonada.
“Seu Herculano, onde está Danilo?”
“E eu sei daquele ingrato.”
Quando Daniel chegou à pensão, cinco meses antes, Danilo já ocupava a recepção naquele turno. E volta e meia, largava o posto. Daniel logo percebeu que o sujeito não seria um aliado, nem exatamente um inimigo. Seria um tormento a mais naquele lugar. Ficou surpreso de saber que o outro não morava na pensão. E até agora não descobriu onde. Na verdade, não interessava muito. Com certeza, já havia algum tempo, Danilo fizera uma cópia da chave da rua, sem a concordância dos Velhos. Porém o que realmente intrigava Daniel era o fato de os Velhos o manterem na pensão. O Velho por ser tão duro com todo mundo. A Velha por claramente não suportar Danilo. O Velho o repreendia na frente de qualquer um. A Velha não lhe dirigia a palavra. Danilo sempre respondia o que o Velho queria ouvir. E o Velho nunca confiscava a cópia da chave.
Batidas fortes na porta da rua.
Daniel e o Velho tomaram um susto.
Então não era uma maluquice, uma invenção, constatou Daniel.
“Vá atender a porta”, disse o Velho.
Daniel virou a cabeça para trás e o encarou com uma raiva indisfarçável, o rosto rígido.
O Velho não queria saber de caretas. Ele queria que Daniel fosse adiante, que se sacrificasse por ele.
Talvez aquele fosse o momento da verdade, pensou Daniel. O momento de dizer: chega. Chega de trabalhar por cama, comida e quase dinheiro nenhum. Chega de aturar esses Velhos. Chega de cuidar dessa casa velha. Mas, como em outras vezes, ele respirou fundo e logo se lembrou do motivo que o levara até aquela pensão, que o fizera sair de sua cidade, no interior, na calada da noite, cinco meses antes. Claro que, com um pouco mais de sorte, ele não estaria naquele buraco. Mas pelo menos não passava fome, não dormia ao relento. Por isso, continuaria ali até arranjar coisa melhor. Continuaria aguentando toda essa amolação.
O Velho não aceitava que Daniel ainda estivesse parado, no meio do corredor.
“Anda, rapaz, anda.”
Mais batidas fortes na porta da rua.
Daniel não se movia.
Talvez fosse o caso de algo mais excêntrico, continuou Daniel. Seria algum assaltante metido a besta, querendo entrar pela porta da frente só por farra? Contando com uma possível ingenuidade de alguém ali dentro para ter êxito, sem tanto esforço? Esperando convencer algum imbecil com uma historiazinha sobre uma emergência, para o imbecil então destrancar a porta e o assaltante sorrir, mostrar a arma, abrir caminho para os companheiros, dar uns tabefes e levar tudo de valor? Já ocorreram na calçada, em frente à pensão, dois ou três assaltos testemunhados por Daniel. As vítimas eram hóspedes e moradores, chegando ou saindo, no finalzinho da tarde. Em outros tempos, Daniel soube, ali acontecera a invasão de uma dupla armada para roubar, principalmente, os caixeiros-viajantes. E ainda mais longe no passado, numa manhã, um homem de chapéu panamá entrou aos gritos à procura de um jovem. Ao aparecer na porta da cozinha, este fora esfaqueado várias vezes. A vítima morava na pensão e trabalhava como auxiliar num escritório de contabilidade. O assassino era dono de uma farmácia, onde a filha de quatorze anos o ajudava. Logo o povo ficou sabendo que a vigilância do pai falhara. A mãe havia descoberto a gravidez da filha. A jovem contou tudo depois de muita ameaça e alguma violência. O pai ficou preso poucos anos.
Ou talvez fosse algo mais corriqueiro: alguém carregando uma mala e perdido pelo centro de Salvador, em busca de um quarto. Pelo menos uma vez por semana, Daniel testemunhava a cena, ao passar tarde pela recepção. Danilo sempre enxotava qualquer um, sem abrir a porta, apenas falando e ouvindo através dela. Era a ordem expressa dos Velhos. Não aceitar ninguém depois das nove horas. Depois que a porta da rua era fechada. A partir desse horário, a função de Danilo era, sobretudo, controlar a saída e a entrada dos hóspedes e moradores, checando o livro de registro. Daniel sabia que os Velhos odiavam que essa gente, como os dois diziam, ficasse indo da pensão para a rua e vice-versa, tarde da noite, para beber, jogar e trepar. Os Velhos não admitiam nenhuma dessas coisas lá dentro. E Danilo se mantinha vigilante para não descumprirem a regra. Na verdade, denunciava os desafetos. E acobertava aqueles que o subornavam. Nos cinco meses que estava por ali, Daniel já ouvira segredos de hóspedes, moradores e dos Velhos. Ele conhecia algum podrezinho de um ou de outro. Nada tão chocante a ponto de assustá-lo, nada de grandes revelações. Ele ouvia comentários, meias palavras, trechos de conversas. Geralmente, as pessoas o tomavam por inofensivo, insignificante, quando ele estava próximo, ocupando-se de suas tarefas.
Mais batidas fortes na porta da rua.
O Velho não parava de resmungar.
Daniel percebeu que não tinha saída: precisava acabar logo com aquele tormento para cair de novo na cama. Por ele, daria meia-volta bem rápido, entraria em seu quarto e fecharia a porta. Tudo resolvido sem nada resolver. Mas fazer isso seria o mesmo que arranjar ainda mais problemas com os Velhos. Portanto, avante, soldado.
Daniel foi em direção à porta da rua, devagar. Logo acelerou o passo, até parar bruscamente.
Todas as noites, àquela hora, a recepção era iluminada por uma lâmpada de luz branca, sobre o balcão. Um lustre simples com três globos era desligado sempre às nove. A luz amarela do corredor permanecia acesa a noite inteira.
Que horas eram exatamente?, Daniel quis saber, o corpo quase colado à porta da rua. Não devia ser tão tarde. Ele sentia uma certa agonia toda vez que procurava saber as horas e não tinha um relógio por perto.
Uma voz possante deu-lhe um susto:
“Alguém aí, por favor”.
Sem dúvida, o sujeito lá fora sabia que alguém ali dentro chegara mais próximo.
Daniel limpou a garganta:
“Pois não”.
“Eu queria um quarto, amigo.”
Os olhos de Daniel e os do Velho se encontraram. O primeiro olhava sem mostrar surpresa com o desenrolar da situação. Virara-se para trás a fim de confirmar ao outro que corria tudo bem, não havia motivos para preocupações. No fundo, estava enfurecido por toda a aflição do Velho terminar no óbvio. E claro, aliviado, por não acontecer nenhuma péssima novidade naquela noite. Mas o Velho, ouvindo o diálogo, ainda se mantinha apreensivo, não pretendia baixar a guarda facilmente.
Daniel abandonou o Velho e virou-se para o sujeito atrás da porta.
“Já fechamos, senhor. Volte amanhã cedo. A partir das seis.”
Silêncio.
E então o vozeirão do sujeito voltou a impressionar:
“Escuta, amigo. Eu vim de muito longe, não conheço a cidade. Está frio aqui fora. Me parece que não existe outro lugar pelas redondezas onde eu possa dormir. Pelo menos, não um lugar com bom aspecto”.
“Desculpe, senhor. São regras da casa. Se tivesse aparecido até as nove horas.”
Daniel olhou para o Velho, que balançou a cabeça rápida e negativamente.
“Vamos fazer o seguinte: me diga quanto é o valor de duas diárias e eu passo o dinheiro por baixo da porta. Será a garantia de minha boa-fé.”
A potência da voz do sujeito não o ajudava muito. Ela fazia Daniel ter uma ponta de dúvida de que realmente não havia perigo nenhum.
“Não posso fazer isso, senhor. Desculpe. Volte amanhã. Vou lhe arranjar um dos melhores quartos.”
Daniel nem sabia mais o que falava, ele mesmo reconheceu. Ele não tinha autoridade para fazer tal promessa.
Novo silêncio. Dessa vez, mais demorado.
“Senhor?”
Nada de resposta.
“Obrigado, meu jovem.” (Daniel tomou um susto.) “Tudo bem. Eu entendo. Boa noite.”
“Boa noite, senhor.”
Daniel recuperou o fôlego.
No fim, considerou que se saiu a contento, que soube lidar com o sujeito. Curiosamente, foi a primeira vez que enxotou alguém da porta da pensão, que deu uma de Danilo nesse papel.
À medida que se aproximava do Velho, este ia mudando a cara assustada e tensa para a carranca usual. Daniel protegeu com a palma da mão a boca muito aberta, feliz por estar com sono, por seus olhos começarem a pesar novamente. Mas ele não iria livrar-se do Velho tão fácil. Percebeu isso assim que parou, os dois frente a frente. Ele até pôde ver a carranca relaxar um pouco, o rosto grande e vincado se tornar mais leve, satisfeito. E não deu outra. Daniel tinha mais uma coisa a fazer. O motivo pelo qual o Velho estava zanzando por ali. Todas as noites, o Velho acordava, acendia o abajur do criado-mudo, colocava os óculos e pegava ao lado da cama um copo de água para refrescar-se. Dessa vez, o copo caiu no chão. Formou-se uma poça de água com cacos de vidros no assoalho. Tanto para o Velho como para a Velha, que acordara com o barulho, aquela porcaria tinha que ser removida. Imediatamente. Nada de esperar o dia amanhecer.
Depois de sair do banho, em sua rotina noturna, ele se arrumava em seu quarto e ia para a cozinha ampla. Abria a geladeira à procura de alguma sobra do jantar servido aos hóspedes e moradores. Ligava o fogão e esquentava a comida. Limpava tudo, apagava a luz e voltava para o quarto. No corredor, de longe, ele podia ver Danilo, que tomava conta da recepção durante o resto da noite e a madrugada. Isso quando ele estava por lá, quando não largava o posto.
O quarto de Daniel ficava no fundo do corredor que ligava a cozinha, a sala de refeições e a recepção. Era um ponto estratégico, afirmavam os Velhos. Para o caso de qualquer emergência. Para o caso de qualquer amolação, isso sim. Não era raro alguém bater na porta de Daniel e ele ter de deixar o seu descanso, a sua cama, para atender a solicitação de algum hóspede, morador ou dos Velhos. Era um vaso sanitário entupido, ou um gato de rua rondando pelo primeiro andar, ou uma misteriosa poça de vômito apodrecendo na escada, ou a porta da rua que precisava ser aberta para algum hóspede ou morador entrar na pensão. E lá estava Daniel para desentupir, enxotar, esfregar pano e abrir porta. Danilo era quem devia fazer essas tarefas e não ele, indignava-se. Afinal, quem estava de serviço naquele turno? Mas Daniel nunca foi reclamar com os Velhos. Desde o começo, o Velho deixara no ar que as coisas seriam assim. Se não quisesse o emprego, que fosse embora.
O quarto era pequeno, mas com espaço razoável para colocar uma cama de solteiro em um canto e um guarda-roupa estreito ao lado. Além de uma mesa de metal, daquelas de bar, e uma cadeira também de bar, na parede oposta à cama. Para alívio de Daniel, havia uma janelinha alta, que fazia circular um bom vento. Mas o que salvava mesmo era um ventilador nanico que ficava em cima de um banquinho de plástico. E também havia seu bem mais precioso: uma televisão de dez polegadas. Mesmo enxergando tudo dobrado e com as cores trocadas, ele gostava de assistir ao noticiário nela. Aproveitava mais do que se tivesse um rádio. Mas acabava se cansando da imagem confusa. Então, pegava um romance policial ou de terror para ler, até cair no sono.
Naquela noite, justamente quando dormia com um desses livros aberto no peito, de luz acesa, bateram na porta do quarto, com força. Daniel tomou um susto. Levantou-se logo. O livro foi parar no chão. Mais batidas na porta. Uma voz gasta e irritada se pronunciou:
“Levanta, rapaz”.
Era o Velho.
Daniel estava apenas de short. Então vestiu uma camisa e calçou os chinelos. A porta foi destrancada, sem nenhuma pressa. O livro ficou debaixo da cama.
O rosto do Velho carregava o mau humor de sempre. Ele usava óculos grandes, um pijama azul e o cabelo branco estava meio desgrenhado.
“Que demora”, disse o Velho.
“Boa noite, seu Herculano.”
“Olhe ali na porta da rua.”
“O quê?”
“A porta da rua. Alguém está batendo.”
A vontade de Daniel era de meter um soco na cara do Velho. Mas acabou por atendê-lo. Saiu do quarto, abriu caminho e parou no meio do corredor. O Velho recuou para junto da parede, como se buscasse proteção contra uma ameaça desconhecida.
Daniel encarou a porta da rua. Era toda de madeira, cheia de entalhes, mas sem janelinhas ou aberturas. Não dava para ver se realmente havia alguém do outro lado. Ninguém batia nela. Escutava-se o som de um ou outro carro passando. Aliás, Daniel queria saber o que o Velho fazia fora da cama tarde da noite. Os Velhos moravam em uma casa dentro da pensão. No térreo, entre a cozinha e a sala de refeições, havia outro corredor, que levava até a casa deles. Lá havia sala, banheiro, quarto e cozinha, tudo em tamanho menor.
A recepção estava abandonada.
“Seu Herculano, onde está Danilo?”
“E eu sei daquele ingrato.”
Quando Daniel chegou à pensão, cinco meses antes, Danilo já ocupava a recepção naquele turno. E volta e meia, largava o posto. Daniel logo percebeu que o sujeito não seria um aliado, nem exatamente um inimigo. Seria um tormento a mais naquele lugar. Ficou surpreso de saber que o outro não morava na pensão. E até agora não descobriu onde. Na verdade, não interessava muito. Com certeza, já havia algum tempo, Danilo fizera uma cópia da chave da rua, sem a concordância dos Velhos. Porém o que realmente intrigava Daniel era o fato de os Velhos o manterem na pensão. O Velho por ser tão duro com todo mundo. A Velha por claramente não suportar Danilo. O Velho o repreendia na frente de qualquer um. A Velha não lhe dirigia a palavra. Danilo sempre respondia o que o Velho queria ouvir. E o Velho nunca confiscava a cópia da chave.
Batidas fortes na porta da rua.
Daniel e o Velho tomaram um susto.
Então não era uma maluquice, uma invenção, constatou Daniel.
“Vá atender a porta”, disse o Velho.
Daniel virou a cabeça para trás e o encarou com uma raiva indisfarçável, o rosto rígido.
O Velho não queria saber de caretas. Ele queria que Daniel fosse adiante, que se sacrificasse por ele.
Talvez aquele fosse o momento da verdade, pensou Daniel. O momento de dizer: chega. Chega de trabalhar por cama, comida e quase dinheiro nenhum. Chega de aturar esses Velhos. Chega de cuidar dessa casa velha. Mas, como em outras vezes, ele respirou fundo e logo se lembrou do motivo que o levara até aquela pensão, que o fizera sair de sua cidade, no interior, na calada da noite, cinco meses antes. Claro que, com um pouco mais de sorte, ele não estaria naquele buraco. Mas pelo menos não passava fome, não dormia ao relento. Por isso, continuaria ali até arranjar coisa melhor. Continuaria aguentando toda essa amolação.
O Velho não aceitava que Daniel ainda estivesse parado, no meio do corredor.
“Anda, rapaz, anda.”
Mais batidas fortes na porta da rua.
Daniel não se movia.
Talvez fosse o caso de algo mais excêntrico, continuou Daniel. Seria algum assaltante metido a besta, querendo entrar pela porta da frente só por farra? Contando com uma possível ingenuidade de alguém ali dentro para ter êxito, sem tanto esforço? Esperando convencer algum imbecil com uma historiazinha sobre uma emergência, para o imbecil então destrancar a porta e o assaltante sorrir, mostrar a arma, abrir caminho para os companheiros, dar uns tabefes e levar tudo de valor? Já ocorreram na calçada, em frente à pensão, dois ou três assaltos testemunhados por Daniel. As vítimas eram hóspedes e moradores, chegando ou saindo, no finalzinho da tarde. Em outros tempos, Daniel soube, ali acontecera a invasão de uma dupla armada para roubar, principalmente, os caixeiros-viajantes. E ainda mais longe no passado, numa manhã, um homem de chapéu panamá entrou aos gritos à procura de um jovem. Ao aparecer na porta da cozinha, este fora esfaqueado várias vezes. A vítima morava na pensão e trabalhava como auxiliar num escritório de contabilidade. O assassino era dono de uma farmácia, onde a filha de quatorze anos o ajudava. Logo o povo ficou sabendo que a vigilância do pai falhara. A mãe havia descoberto a gravidez da filha. A jovem contou tudo depois de muita ameaça e alguma violência. O pai ficou preso poucos anos.
Ou talvez fosse algo mais corriqueiro: alguém carregando uma mala e perdido pelo centro de Salvador, em busca de um quarto. Pelo menos uma vez por semana, Daniel testemunhava a cena, ao passar tarde pela recepção. Danilo sempre enxotava qualquer um, sem abrir a porta, apenas falando e ouvindo através dela. Era a ordem expressa dos Velhos. Não aceitar ninguém depois das nove horas. Depois que a porta da rua era fechada. A partir desse horário, a função de Danilo era, sobretudo, controlar a saída e a entrada dos hóspedes e moradores, checando o livro de registro. Daniel sabia que os Velhos odiavam que essa gente, como os dois diziam, ficasse indo da pensão para a rua e vice-versa, tarde da noite, para beber, jogar e trepar. Os Velhos não admitiam nenhuma dessas coisas lá dentro. E Danilo se mantinha vigilante para não descumprirem a regra. Na verdade, denunciava os desafetos. E acobertava aqueles que o subornavam. Nos cinco meses que estava por ali, Daniel já ouvira segredos de hóspedes, moradores e dos Velhos. Ele conhecia algum podrezinho de um ou de outro. Nada tão chocante a ponto de assustá-lo, nada de grandes revelações. Ele ouvia comentários, meias palavras, trechos de conversas. Geralmente, as pessoas o tomavam por inofensivo, insignificante, quando ele estava próximo, ocupando-se de suas tarefas.
Mais batidas fortes na porta da rua.
O Velho não parava de resmungar.
Daniel percebeu que não tinha saída: precisava acabar logo com aquele tormento para cair de novo na cama. Por ele, daria meia-volta bem rápido, entraria em seu quarto e fecharia a porta. Tudo resolvido sem nada resolver. Mas fazer isso seria o mesmo que arranjar ainda mais problemas com os Velhos. Portanto, avante, soldado.
Daniel foi em direção à porta da rua, devagar. Logo acelerou o passo, até parar bruscamente.
Todas as noites, àquela hora, a recepção era iluminada por uma lâmpada de luz branca, sobre o balcão. Um lustre simples com três globos era desligado sempre às nove. A luz amarela do corredor permanecia acesa a noite inteira.
Que horas eram exatamente?, Daniel quis saber, o corpo quase colado à porta da rua. Não devia ser tão tarde. Ele sentia uma certa agonia toda vez que procurava saber as horas e não tinha um relógio por perto.
Uma voz possante deu-lhe um susto:
“Alguém aí, por favor”.
Sem dúvida, o sujeito lá fora sabia que alguém ali dentro chegara mais próximo.
Daniel limpou a garganta:
“Pois não”.
“Eu queria um quarto, amigo.”
Os olhos de Daniel e os do Velho se encontraram. O primeiro olhava sem mostrar surpresa com o desenrolar da situação. Virara-se para trás a fim de confirmar ao outro que corria tudo bem, não havia motivos para preocupações. No fundo, estava enfurecido por toda a aflição do Velho terminar no óbvio. E claro, aliviado, por não acontecer nenhuma péssima novidade naquela noite. Mas o Velho, ouvindo o diálogo, ainda se mantinha apreensivo, não pretendia baixar a guarda facilmente.
Daniel abandonou o Velho e virou-se para o sujeito atrás da porta.
“Já fechamos, senhor. Volte amanhã cedo. A partir das seis.”
Silêncio.
E então o vozeirão do sujeito voltou a impressionar:
“Escuta, amigo. Eu vim de muito longe, não conheço a cidade. Está frio aqui fora. Me parece que não existe outro lugar pelas redondezas onde eu possa dormir. Pelo menos, não um lugar com bom aspecto”.
“Desculpe, senhor. São regras da casa. Se tivesse aparecido até as nove horas.”
Daniel olhou para o Velho, que balançou a cabeça rápida e negativamente.
“Vamos fazer o seguinte: me diga quanto é o valor de duas diárias e eu passo o dinheiro por baixo da porta. Será a garantia de minha boa-fé.”
A potência da voz do sujeito não o ajudava muito. Ela fazia Daniel ter uma ponta de dúvida de que realmente não havia perigo nenhum.
“Não posso fazer isso, senhor. Desculpe. Volte amanhã. Vou lhe arranjar um dos melhores quartos.”
Daniel nem sabia mais o que falava, ele mesmo reconheceu. Ele não tinha autoridade para fazer tal promessa.
Novo silêncio. Dessa vez, mais demorado.
“Senhor?”
Nada de resposta.
“Obrigado, meu jovem.” (Daniel tomou um susto.) “Tudo bem. Eu entendo. Boa noite.”
“Boa noite, senhor.”
Daniel recuperou o fôlego.
No fim, considerou que se saiu a contento, que soube lidar com o sujeito. Curiosamente, foi a primeira vez que enxotou alguém da porta da pensão, que deu uma de Danilo nesse papel.
À medida que se aproximava do Velho, este ia mudando a cara assustada e tensa para a carranca usual. Daniel protegeu com a palma da mão a boca muito aberta, feliz por estar com sono, por seus olhos começarem a pesar novamente. Mas ele não iria livrar-se do Velho tão fácil. Percebeu isso assim que parou, os dois frente a frente. Ele até pôde ver a carranca relaxar um pouco, o rosto grande e vincado se tornar mais leve, satisfeito. E não deu outra. Daniel tinha mais uma coisa a fazer. O motivo pelo qual o Velho estava zanzando por ali. Todas as noites, o Velho acordava, acendia o abajur do criado-mudo, colocava os óculos e pegava ao lado da cama um copo de água para refrescar-se. Dessa vez, o copo caiu no chão. Formou-se uma poça de água com cacos de vidros no assoalho. Tanto para o Velho como para a Velha, que acordara com o barulho, aquela porcaria tinha que ser removida. Imediatamente. Nada de esperar o dia amanhecer.
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